A vida de Deadria Farmer-Paellmann mudou, nos anos 1990, quando ela se viu em um antigo cemitério de africanos escravizados, aos pés do centro financeiro de Wall Street, em Nova York.
A descoberta arqueológica representa até hoje o maior cemitério de pessoas escravizadas da era colonial dos Estados Unidos.
No total, foram achados ali restos mortais de 419 pessoas: homens, mulheres e crianças de origem africana, enterrados individualmente em caixões de madeira.
Monumento para os escravos enterrados na região de Wall Street
Cerca de 20 mil africanos escravizados foram enterrados nesta região de Manhattan, segundo estimativas históricas e antropológicas.
Natural do Brooklyn, também em Nova York, e descendente de escravizados, Farmer-Paellmann diz que o contraste entre as ossadas de seus possíveis ancestrais e a opulência do mercado financeiro que se ergueu em torno despertaram nela a consciência de que as duas coisas estavam intimamente conectadas.
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Empresas bilionárias e centenárias americanas tinham, provavelmente, em sua fundação, lucrado com o suor não remunerado dos africanos trazidos para trabalhar em condição de escravidão no país até que, em 1865, a escravidão fosse abolida.
Isso a impulsionou, em 2000, a criar o Restitution Study Group – grupo de advogados e estudiosos que se dedica desde então a pesquisar e documentar o histórico de grandes corporações com a escravatura e a demandar – extrajudicialmente ou nos tribunais – medidas compensatórias aos seus descendentes
Já foram processadas 17 empresas, e outras tantas instituições optaram adotar medidas de reparação histórica sem serem levadas à Justiça.
“Quando comecei a expor a cumplicidade corporativa (com a escravidão), a gente já ouvia que a nação tinha sido construída nas costas de pessoas escravizadas”, diz Farmer-Paellmann à BBC News Brasil.
“Mas até então isto era apenas uma ideia abstrata e a exigência de reparações era considerada uma demanda um tanto militante.”
O primeiro processo do grupo foi movido em 2002. De lá para cá, ela diz, o debate público sobre a questão mudou significativamente na sociedade americana.
“Quando começamos a mostrar (por meio de pesquisas e documentos) que as empresas existentes lucraram concretamente com a prática, mesmo os mais conservadores passaram a apoiar a ideia de que as empresas deveriam fazer algo”, afirma.
“O movimento se popularizou porque as pessoas entendem que o dano foi cometido e que os beneficiários ainda estão vivos através destas empresas e portanto algo pode, sim, ser feito.”
O caminho trilhado por Farmer-Paellmann guarda semelhanças com uma trajetória que tem dado seus primeiros passos no Brasil.
Entre os fundadores e acionistas do BB estavam alguns dos mais notórios traficantes de escravizados da época – entre eles José Bernardino de Sá, tido como o maior contrabandista de africanos do período.
Em 18 de novembro, a presidente da instituição, Tarciana Medeiros, primeira mulher negra no cargo desde a fundação do BB em 1808, disse em comunicado no site oficial que “o Banco do Brasil de hoje pede perdão ao povo negro pelas suas versões predecessoras e trabalha intensamente para enfrentar o racismo estrutural no país”.
Para Farmer-Paellmann, as situações abordadas por ela nos Estados Unidos e as vistas no Brasil são semelhantes, com a nota “trágica” de que, no Brasil, o número de descendentes de escravizados é exponencialmente maior. Mas a lógica é a mesma.
“Nossos ancestrais trabalharam durante séculos sem remuneração, as mulheres foram forçadas a procriar, as pessoas foram torturadas para construir essa riqueza para as corporações”, diz a advogada.
“O mínimo que elas poderiam fazer agora é garantir que os descendentes que teriam sido os herdeiros se os ancestrais tivessem sido pagos acessem parte da riqueza que foi acumulada.”
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil – Qual é a primeira iniciativa conhecida de reparação e que resultados obteve?
Deadria Farmer-Paellmann – Nos Estados Unidos, o primeiro movimento de massa para reparações da escravatura ocorreu no final do século 19. Foi iniciado pelos próprios ex-escravos e foi chamado de National Ex-Slave Mutual Relief, Bounty and Pension Association (algo como Associação Nacional de Ajuda Mútua, Recompensas e Pensões para Ex-Escravos).
O grupo era liderado por uma mulher chamada Callie House, que acabou na prisão sob a acusação de fraude. A lógica de House era a seguinte: naquele momento, a população apoiava pagamento de pensão para pessoas escravizadas se juntaram às Forças Armadas para lutar na Guerra Civil. Se assim era, também fazia sentido que os africanos escravizados serviram ao governo durante mais de 300 anos nas mais diferentes funções também tivessem direito a pensões. E então ela solicitou ao governo essas pensões.
Ela até entrou com uma ação judicial (a primeira de reparação pela escravidão no país, em 1915) e acabou sendo presa pelo governo sob a alegação de que estava enganando os ex-escravos, fazendo-os acreditar que havia uma chance de eles terem sucesso neste pleito.
Outros movimentos surgiram desde então, liderados também por mulheres, como Queen Mother Audley Moore, já no século 20. Ela teve grande destaque no pedido de compensação pelo genocídio (dos escravizados), que é muito semelhante às reparações contemporâneas pela escravidão. O genocídio foi o sequestro de pessoas, a destruição das suas identidades étnicas e uma variedade de condições de vida a que fomos submetidos.
E, agora, há um movimento mais moderno que realmente começou em algum momento no início dos anos 2000, eu fiz parte desse movimento com essas demandas em relação à “cumplicidade corporativa com a escravidão”, ao lado de organizações importantes como a Coalizão Nacional de Negros pela Reparações na América (conhecida pela sigla em inglês N’COBRA).
Minha organização, o Restitution Study Group (Grupo de Estudo de Restituição) tem sido mais ativo no litígio judicial e, em particular, no esforço em torno da cumplicidade corporativa que é (provar) que toda empresa que existe desde a época da escravatura mantém um papel cúmplice sobre a escravatura.
BBC News Brasil – Como surgiu a ideia de demandar reparações das grandes corporações, já que historicamente os movimentos pareciam mais focados em demandar compensações dos Estados?
Farmer-Paellmann – Minha primeira aproximação à ideia de que empresas desempenharam um papel na escravidão foi quando fui contratada para fazer divulgação de mídia sobre um cemitério de restos mortais africano descoberto nos arredores de Wall Street, em Nova York.
Aquele lugar continha os remanescentes da primeira geração de africanos a ser trazida para a América (eram cerca de 400 corpos). Eram pessoas enterradas com pingentes de prata ou com os dentes lixados, como é culturalmente visto em algumas populações africanas. Aquelas pessoas que foram possivelmente as primeiras a conseguir sobreviver a todo o comércio transatlântico estavam enterradas ali, ao pé de Wall Street, a capital empresarial do mundo.
Foi nesse momento que eu entendi a clara conexão corporativa com a escravidão, e decidi que queria ir para a faculdade de Direito para construir um caso de reparação. Pensei que iria me concentrar no governo, mas acabei me concentrando nas corporações quando percebi que o governo federal teria que abrir mão de sua imunidade soberana para ser processado (nos Estados Unidos, a União não pode ser processada judicialmente por malfeitos).
Mas com as empresas percebi uma variedade de abordagens possíveis, como fraude contra os consumidores ou mesmo a criação de áreas jurídicas apenas voltadas para a restituição. E foi esse o tipo de ação que construímos.
Também tivemos reclamações de direitos humanos no nosso litígio, mas essencialmente comecei por telefonar às empresas e informá-las da sua história e exigir que pedissem desculpa e pagassem uma restituição pela sua ligação com a escravatura.
BBC News Brasil – É possível saber o quanto as corporações estão relacionadas com a história da escravidão nos Estados Unidos? Quão generalizada foi essa conexão?
Farmer-Paellmann – Essa conexão corporativa com a escravidão é muito rastreável. A primeira empresa que abordamos, a (seguradora) Aetna Incorporated, havia elaborado apólices de seguro de vida sobre a vida de africanos escravizados, tendo os proprietários desses escravizados como beneficiários. Na prática, o que eles faziam era proteger o investimento feito em um humano escravizado, já que pessoas eram bens muito caros para comprar.
As políticas da Aetna essencialmente deram aos potenciais detentores de bens humanos escravizados a confiança – e garantia – de pôr seu dinheiro neste tipo de investimento. Assim, pudemos fazer pesquisas genealógicas e encontrar políticas escravistas. Na verdade, liguei para eles, e eles tinham as políticas em seus arquivos e enviaram uma variedade delas, bem como informações sobre várias outras empresas que também tinham políticas sobre escravos.
Basicamente, o que passamos a fazer foi uma espécie de inventário sobre como várias empresas começaram nos negócios com políticas escravistas e acabaram se transformando em grandes bancos ou instituições. É o caso do JP Morgan Chase, por exemplo.
Portanto, o trabalho é tão simples e básico quanto olhar para os relatórios anuais que as empresas têm, esses livros históricos. Os fundadores dos bancos estão muitas vezes envolvidos no comércio de escravos. Um exemplo é o Bank of America. Um de seus antecessores, o Providence Bank of Rhode Island, foi fundado por John Brown, um dos mais notórios comerciantes de escravos da história americana, e contou com a participação original de todos os comerciantes de escravos em Rhode Island.
Então, esses documentos que estão nas bibliotecas, nos arquivos, fornecem esses detalhes. O outro aspecto da pesquisa é olhar para as viagens transatlânticas de comércio de escravos. Há todo um banco de dados configurado, o banco de dados do comércio transatlântico de escravos, que pode mostrar às vezes os nomes dos acionistas desses bancos envolvidos no tráfico de escravizados. Então, não é muito difícil. Às vezes, em apenas cinco minutos, você encontra uma evidência contra uma corporação.
BBC News Brasil – Uma vez que você encontre essas conexões, qual o seu trabalho a partir daí?
Farmer-Paellmann – Nos Estados Unidos agora, por causa da pesquisa que fizemos nos anos 2000, começaram a ser aprovadas leis em todo o país chamadas leis de divulgação sobre a escravidão. Já são cerca de 15 leis estaduais ou municipais em todo o país. A primeira foi de autoria do senador californiano Tom Hayden, e seu projeto se concentrou principalmente na indústria de seguros.
Mas a grosso modo o que a legislação diz é que qualquer empresa que faça negócios com o ente governamental onde a lei se aplica precisa relatar qual é a sua ligação com o comércio de escravos e identificar ao máximo as pessoas que foram escravizadas, transformando isso em um documento público e com algumas espécie de plano de reparação.
Eles não são obrigadas a necessariamente pagar indenizações. Elas podem, por exemplo, criar um fundo para as pessoas de uma determinada comunidade.
Outro dos pioneiros nessas leis foi a cidade de Chicago, e, por isso o JP Morgan Chase forneceu seu relatório indicando que eles desempenharam um papel na escravidão. E imediatamente pagaram US$5 milhões.
O pagamento é uma indicação de que eles estão cientes do fato de terem uma conexão com a escravidão. Mas US$ 5 milhões como reparação é um insulto. E, de fato, temos uma expectativa de que mais virá, mas pelo menos isso é uma demonstração de reconhecimento.
Outra instituição, que não foi apanhada nas divulgações mas expôs a sua ligação à escravatura, foi a Brown University. E o que a Brown fez foi criar uma comissão para estudar sua ligação com a escravidão e no final da pesquisa concluíram que John Brown, a mesma pessoa que criou o Bank of America, desempenhou um papel na fundação da Universidade, é por isso que ela se chama Brown.
O que eles concluíram é que tinham algumas conexões fortes, que houve algum financiamento inicial da universidade no comércio de escravos e por isso criaram um fundo de US$100 milhões. E assim começou a tendência que já é mundial de criar esse fundo fiduciário de 100 milhões nas universidades.
Já há provavelmente cerca de quatro outras universidades que seguiram a Brown University com a mesma quantidade, incluindo a Universidade de Cambridge, no Reino Unido, com cem milhões de libras. E esse dinheiro é destinado a beneficiar os descendentes de africanos escravizados. Portanto, estes são os tipos de coisas que podem acontecer quando uma instituição toma conhecimento da sua história de comércio de escravos.
BBC News Brasil – Como uma reparação deve ser medida? Quais aspectos devem ser levados em consideração ao decidir quanto uma empresa com histórico ligado à escravidão deve pagar?
Farmer-Paellmann – Não sou economista, então, provavelmente não sou a melhor pessoa para responder a essa pergunta. Mas o que acreditamos é que uma empresa pode fazer muito, há certos níveis de financiamento que uma empresa pode fornecer sem sequer ter de reportar aos seus acionistas nos Estados Unidos. São até US$ 20 milhões anuais.
Com US$ 20 milhões investidos adequadamente, você pode realmente fazer a diferença. Eles podem fazer algo, e essa é a primeira coisa: US$ 5 milhões definitivamente não são suficientes. Já US$ 20 milhões por cem anos pode ser um pouco melhor.
BBC News Brasil – Em que exatamente esse dinheiro da reparação deveria ser usado? Deveria ser destinado exatamente aos descendentes de pessoas escravizadas por cada uma das empresas ou um uso mais amplo para a comunidade descendente deles?
Farmer-Paellmann – Pode financiar algumas pesquisas, porque é claro que precisamos saber os detalhes da história. Mas, definitivamente, há uma necessidade de habitação, de melhorar as condições de habitação das pessoas, cuidados de saúde, educação, todas essas coisas.
Observamos, por exemplo, nos Estados Unidos, comunidades inteiras que estão sendo gentrificadas e, portanto, os descendentes de africanos escravizados estão sendo excluídos de seus próprios bairros. O que estamos tentando é conseguir dinheiro para comprar algumas dessas comunidades e garantir que a habitação continue acessível.
Quanto aos beneficiários, é muito difícil hoje identificar as pessoas específicas que foram escravizadas por uma dada empresa e isso se deve à natureza do comércio transatlântico de escravos. Se você olhar os registros do banco de dados do comércio transatlântico de escravos, nossos antepassados não estão listados por nome. Fica escrito apenas “200 mulheres e 20 homens”.
Não nos foi dada a dignidade de sermos listados pelo nome e, curiosamente, ao mesmo tempo na História havia os europeus migrando (para países da América) e todos os detalhes sobre seu ponto de partida até seu novo local estão registrados. Era possível terem registrado quem éramos e de onde viemos, mas até certo ponto os responsáveis nunca tiveram a intenção de que sobrevivessemos e, claro, muitos de nós trabalhamos até a morte, especialmente em lugares como o Brasil e o Caribe.
Acho que seria mais apropriado se qualquer descendente de africanos escravizados, independentemente de poder ou não ser rastreado até aquela empresa específica, fosse um beneficiário. Enfatizo que eles deveriam ser descendentes de africanos escravizados, esse deve ser o requisito. Mas, fora isso, é quase impossível identificar os detalhes.
BBC News Brasil – Em mais de 20 anos de processos judiciais e rastreamento de históricos de empresas, quantos casos você ganhou e que balanço faz?
Farmer-Paellmann – Ir ao tribunal pode não ser necessariamente a melhor maneira, mas até certo ponto pode ser a única forma de fazer com que uma empresa leve o assunto a sério e, dependendo das leis que existem no seu país, pode ser a abordagem mais eficaz.
Por exemplo, sem leis de divulgação sobre relações históricas com a escravatura, algumas empresas tiveram a audácia de mentir nos seus relatórios apresentados aos municípios e, por isso, estamos em fase de planejamento para litígios contra essas empresas por fraude ao consumidor. O litígio pode ser muito eficaz. Abrimos processos contra 17 empresas e estamos mirando em mais três.
Mas devo repetir um ditado que um dos meus advogados sempre diz: “Nos corredores da Justiça, a Justiça está nos corredores”. Muitas vezes você pode não conseguir ganhar o caso no tribunal, mas o que acontece é que diferentes tipos de negociações se iniciam ao longo do processo, fora dos tribunais, que tornam possível que essas empresas façam pagamentos.
Não tivemos que levar as universidades ao tribunal, por exemplo. Elas entenderam o potencial (prejuízo da situação) e, claro, sempre tiveram medo da possibilidade de processarmos e assumiram a responsabilidade de fazer a coisa certa. Com as grandes corporações, eu diria, esta também seria a coisa mais adequada.
As pessoas realmente apreciam quando as empresas assumem responsabilidade por sua história. Eles estão absolutamente em posse da riqueza que pertence ao povo, porque nossos ancestrais trabalharam durante séculos sem remuneração, as mulheres foram forçadas a procriar, as pessoas foram torturadas para construir essa riqueza para as corporações. O mínimo que eles poderiam fazer agora é garantir que os descendentes que teriam sido os herdeiros se os ancestrais tivessem sido pagos acessem parte da riqueza que foi acumulada.
E a solução ideal seria por meio de fundos. Até agora, (as empresas pagaram) cerca de US$ 20 milhões, mas esses pagamentos foram encaminados às principais instituições negras (do país) que não tiveram nada a ver com o movimento de reparações. Funciona mais como um pedido de desculpas, mas nada que seja rastreável.
Realmente acreditamos que quando essas instituições tomam a decisão de criar fundos de restituição ou fazer quaisquer pagamentos de reparações, isso deveria ir para um fundo fiduciário controlado pelos descendentes de negros escravizados. Para que haja um controle administrativo e para que não se relique um arranjo patriarcal, em que não administramos nosso próprio dinheiro.
BBC News Brasil – Qual é atualmente o caso mais bem-sucedido de reparação histórica, na sua avaliação, no mundo?
Farmer-Paellmann – Há dois bons exemplos. Um é da Universidades de Georgetown, o 272. Descobriu-se que os jesuítas que fundaram a universidade venderam 272 pessoas para financiar este centro educacional de primeira em Washington D.C..
Os jesuítas estão trabalhando com os descendentes que foram identificados através de testes de DNA, porque neste caso foi possível localizar os restos mortais dessas pessoas que foram escravizadas bem como os nomes, pra conseguir rastreá-las (cerca de 8 mil descendentes dos escravizados foram localizados).
Eles têm trabalhado em estreita colaboração já há vários anos e mais recentemente, houve uma contribuição de US$ 27 milhões paga em reparações a um fundo fiduciário e este tem sido um processo contínuo de verdade e reconciliação entre os descendentes da Universidade de Georgetown 272 e os jesuítas. Este é um resultado muito positivo.
O outro exemplo é o da Brown University, que criou o fundo de US$ 100milhões.
BBC News Brasil – Essa discussão é bastante recente no Brasil e alguns críticos questionam se a essa altura seria justo cobrar reparações por ações tomadas há centenas de anos, quando essas companhias talvez tivessem outros donos e não tivessem ações negociadas em mercado. Como responde a isso?
Farmer-Paellmann – As empresas pertencem a pessoas físicas que, de modo geral, perante a lei, com os ativos que adquirem como acionistas, adquirem também passivos. Isso é um fato conhecido, os acionistas sabem disso quando fazem o investimento, por isso é especialmente importante que essas empresas façam a sua pesquisa corretamente para que o acionista saiba exatamente no que está se metendo. Os acionistas são responsáveis por expiar crimes contra a humanidade com os quais lucraram.
BBC News Brasil – Na sua perspectiva, como esse debate público evoluiu nos últimos 20 anos nos Estados Unidos?
Farmer-Paellmann – Bem, quando comecei a expor a cumplicidade corporativa, a gente já ouvia que a nação tinha sido construída nas costas de pessoas escravizadas. Mas, até então, isto era apenas uma ideia abstrata e a exigência de reparações era considerada uma demanda um tanto militante.
Mas quando começamos a mostrar que as empresas existentes lucraram concretamente com a prática, mesmo os mais conservadores passaram a apoiar a ideia de que as empresas deveriam fazer algo, porque estão em melhor posição para isso.
O que aconteceu é que o movimento se popularizou porque as pessoas entendem que o dano foi cometido e que os beneficiários ainda estão vivos através destas empresas e algo pode, sim, ser feito.
BBC News Brasil – Você vê a possibilidade de replicar no Brasil o caminho que você e seu grupo trilharam em relação a reparações por ligação com a escravatura?
Farmer-Paellmann – Eu acho que as situações são idênticas e a tragédia é que há muito mais descendentes de africanos escravizados no Brasil do que nos Estados Unidos. O Brasil poderia repetir a trajetória, mas em ainda maior escala.
Fonte: BBC Brasil